À luz sincera do dia
Museu de Arte Contemporânea de Elvas. Portugal 2014
Curated by João Silvério
A luz é uma coreografia involuntária
“À luz sincera do dia” é o título da primeira exposição individual de Rui Calçada Bastos no Museu de Arte Contemporânea de Elvas – Colecção António Cachola.
O artista explora diversas instâncias da paisagem urbana que nos aproximam de um olhar auto-referencial sobre a cidade.
Uma das obras, intitulada “Ghost”, é uma escultura efémera que foi construída numa das salas da exposição e será destruída no final desta, ficando o seu projecto como memória descritiva e documento da obra e das suas edificações, tanto passadas (já foi construída em Berlim, na exposição “Passagem de nível”, Galeria Invaliden1, Berlim) como futuras. Esta obra sinaliza uma relação temporal com a transitoriedade e a amnésia do quotidiano, à qual dificilmente resistimos.
A cidade é o campo de possibilidades que o artista indaga e observa sob um olhar aparentemente romântico, mas que não despreza o detalhe mais (in)significante, por vezes nos seus limites, como é o caso da série de fotografias “Untitled 2012 (Snow Dust)”, registadas no lago Mälaren, que atravessa a cidade de Estocolmo e se encontra com o mar Báltico. A luz e a dispersão de pequenos resíduos de neve convocam uma espécie de imaterialidade visual muito próxima das imagens cósmicas que conhecemos do universo da ciência. Por outro lado, estas imagens desenvolvem-se como uma sequência, o que denuncia o seu percurso no espaço da paisagem, que corresponde ao seu nomadismo urbano. Processo introspectivo (e auto-referencial) que vamos encontrar noutras obras da exposição, como por exemplo o vídeo “Passagem de nível” (2014), executado na cidade onde vive, Berlim. Contudo, estas imagens não pretendem localizar, e deste modo retratar, uma cidade específica, mas sim dar a ver ocorrências que fazem parte da cidade e que incorporámos de tal forma que já não afectam o nosso quotidiano.
Porém, enquanto obra de arte, é através do processo artístico do autor que ganham relevância e procuram no nosso olhar o protagonismo que o hábito lhes subtraiu, sendo recuperadas para uma cidade imaginária e ficcional que se materializa sob o olhar do artista.
Duas fotos a preto e branco, de dimensão média e interligadas como um díptico, Untitled Dyptich (2008), são o prenúncio desta linha de trabalho em que Rui Calçada Bastos propõe ao espectador uma espécie de teste à sua compreensão da imagem enquanto lugar que se transforma. Há uma diferença entre ambas que nos vai relacionar com o tempo e com sistemas racionais de organização da cidade. As imagens, enquanto díptico, propõem dois momentos, um antes e um depois da marcação das passadeiras para peões, mas há também uma mudança na própria imagem, que se torna mais gráfica e menos contrastada. A marcação da passagem de peões sobre o alcatrão negro do pavimento do cruzamento passa a denotar uma maior amplitude de meios-tons. O processo de gradação lumínica é semelhante ao que assiste as fotografias registadas no lago Mälaren, “Untitled 2012 (Snow Dust)”.
Se há aqui uma tendencial poética das imagens, esta confronta-se com uma escultura, “Ghost” (2014), constituída por uma parede que retém ainda a memória de uma escada. Uma pré-existência que nos relaciona com a actividade humana, onde a presença do movimento do corpo encontra a sua inscrição temporal e fragmentária. A escultura, que se materializa entre o desenho e a instalação no espaço da sala do museu, é simultaneamente um lugar paradoxal, não apenas pelo seu deslocamento simbólico mas também por ter na outra face o ecrã onde as imagens do vídeo “Passagem de nível” (2014) são projectadas. A relação entre estas situações urbanas e o que poderemos catalogar como pequenos “acidentes” quotidianos que incorporamos na nossa vivência, alguns fruto dos fenómenos naturais, alia-se a um secreto movimento da cidade, que concorre para nos fazer reencontrar um imaginário romântico, onde um rumor visual se cruza com uma construção sonora que envolve o espectador na narrativa entrecortada desta obra.
Neste contexto, uma obra sem título, “Untitled” (2013) introduz uma perspectiva contraditória na exposição, articulando e alterando a posição do suporte, o ecrã de plasma. Este é colocado sobre o chão da sala, na vertical, acentuando o movimento sistemático e repetitivo dos operários que montam um andaime nas traseiras de um prédio. Nada de especial ocorre durante uma tarefa que exige rigor, cuidado e atenção. É mais um momento banalizado de uma obra que está em progresso e faz parte da paisagem urbana com que lidamos diariamante. Não se conhece o lugar ou a cidade onde a acção se passa, contudo há uma métrica quase musical nesta acção que se desenvolve em torno de si mesma, como uma coreografia involuntária sem começo nem fim.
Aparentemente, Rui Calçada Bastos activa um movimento de deslocação do olhar e da nossa percepção sobre momentos concretos, em que a transitoriedade prevalece. Contudo, a auto-referencialidade pode tornar-se a presença mais ambígua: uma imagem austera de um homem visto de costas revela um momento íntimo, despudorado, mostrando o seu cabelo acabado de cortar disperso sobre o corpo coberto por uma camisa branca (tal como a parede na obra “Ghost”); esses restos de cabelo, essa roupagem do corpo, denunciam uma atitude tranquila, sincera e despojada de códigos convencionais da revelação dessa corporalidade que a si mesmo se representa como uma morfologia transformada que já é apenas registo. Como um espectro de si mesma.
João Silvério
Light is an involuntary choreography
“À luz sincera do dia” [In the sincere light of day] is the title of Rui Calçada Bastos’ first
solo exhibition at the Elvas Museum of Contemporary Art – António Cachola Collection. Here, the artist explores several instances of urban landscape, confronting us with a self-referential view of the city.
One of the pieces, entitled ‘Ghost’, is an ephemeral sculpture that was built on one of the exhibition’s rooms and will be torn down at its close, leaving behind its project as a descriptive memory and document of the work and its building history, both past (it was already built in Berlin, as part of the ‘Passagem de nível’ [Level crossing] exhibition, at the Invaliden1 gallery) and future. This work conveys a temporal relationship with the transitoriness and amnesia of everyday life, which we have difficulty in resisting.
The city is the field of possibilities that the artist investigates and observes via a perspective that, though seemingly romantic, does not overlook the most (in)significant details, sometimes at its limits, as is the case of ‘Untitled 2012 (Snow Dust)’, a series of photographs taken at Lake Mälaren, which runs through the city of Stockholm on its way to the Baltic Sea. Light and tiny, scattered residues of snow combine to evoke a kind of visual immateriality that is quite close to familiar images of the cosmos from the scientific sphere. On the other hand, these images develop like a sequence, hinting at an itinerary across the landscape, which mirrors their urban nomadism. This introspective (and self-referential) process is also observable in other pieces in the exhibition, like ‘Passagem de nível’ (2014), a video made in Berlin, the city in which the artist lives. These images, however, do not pinpoint, that is to say depict, any specific city; instead, they depict events that are part of the city and which we have internalised to such an extent that they no longer affect our daily lives.
However, as a work of art, they achieve relevance through the author’ artistic process, as they try to regain in our eyes the protagonism familiarity has stripped away from them, by moving into an imaginary, fictional city that materialises under the artist’s gaze.
Untitled Dyptich (2008), a set of two interconnected medium-sized photos, is a harbinger of this line of work. In it, Rui Calçada Bastos offers viewers a kind of test of their understanding of the image as a place undergoing transformation. Between the two pictures, there is a difference that will bring us into contact with time and rational systems of urban organisation. As a dyptich, the images convey two distinct moments, a ‘before’ and an ‘after’ the inscription of a pedestrian crossing, but there is also a change in the image itself, which becomes more graphic and less contrasted. The photo showing the pedestrian crossing on the black tar of the pavement displays a greater range of half-tones. The process of luminous gradation used here is similar to the one in the set of photographs taken at Lake Mälaren, ‘Untitled 2012 (Snow Dust)’.
If there is a tendency towards a poetics of images here, it is challenged by ‘Ghost’ (2014), a sculpture that consists of a wall to which the memory of a staircase still clings, a pre-existence that brings us into contact with human activity, in which the presence of the movement of the body finds its temporal, fragmentary inscription. The sculpture, which materialises somewhere between drawing and installation in the exhibition room, is also a paradoxical place, not only due to its symbolic shift but also because the wall’s other side displays the screen in which the video ‘Passagem de nível’ (2014) is shown. The rapport between these urban situations and what we may call small everyday ‘accidents’ (some of them caused by natural phenomena), which we incorporate into our life experience, combines with a secret movement of the city that puts us back in contact with a romantic vision, in which a visual murmur mingles with a sound construction that envelops the viewer in the work’s intermittent narrative.
In this context, ‘Untitled’ (2013) brings a contradictory stance to the exhibition, by changing the position of its support, a plasma screen. The screen is vertically placed on the floor of the room, thus enhancing the systematic, repetitive motions of workers who are taking apart a scaffold in the back of a building. Nothing remarkable occurs during a task that demands precision, care and attention; just another banal moment in a work that is constantly taking place and is part of the urban landscape with which we daily interact. The location in which the process takes place is unknown, but there is a near-musical metrics in this action that develops around itself, like an involuntary choreography without beginning or end.
Rui Calçada Bastos seems to trigger a shifting motion of our gaze and perception over concrete moments, in which transitoriness prevails. However, self-referentiality may become the most ambiguous presence: an austere picture of a man’s back reveals an intimate, uninhibited moment by displaying recently-cut hairs scattered over his body, covered in a shirt (as white as the wall in ‘Ghost’); these debris of hair and that clothing of the body convey a stance that is peaceful, sincere and free of conventional codes for the display of that corporeality that depicts itself as a transformed morphology that is nothing more than a recording, a spectre of itself.
João Silvério