Eva Mendes – Por acaso não é o caso (PT)

Não é por coincidência que se discute o ocaso nesta que é a primeira grande exposição individual de Rui Calçada Bastos (Lisboa, 1971) na Galeria Fernando Santos (Porto, Portugal). Determinado pela evanescência do Sol ao cair do eixo do horizonte, trata-se de um fenómeno que convoca o tempo e a luz unidos enquanto matérias aveludadas pelo recalibrar momentâneo da sua extinção. Contudo, é como se o artista sugerisse que o conjunto de mais de quarenta obras apresentadas subsistissem somente no instante preciso que antecede a sua concretização (a escuridão). Reincidindo sobre uma continuada reflexão acerca da pintura e da escultura no seu trabalho, a exposição perpetua um intermezzo devoto de ambiguidade e errância, a pausa que antecede o lugar de destino e onde são cegas todas as faces dos dados.

Suprimida de uma lógica narrativa caracterizada pela sua linearidade ou constância, a exposição encerra um conjunto de dinâmicas internas reconhecíveis consoante as decisões de deambulação—delimita-se por essa qualidade e potencia-se através dela, como se de uma repetição dissimulada se tratasse. Existem entre si unidades de imagens, grupos que subtilmente se reconhecem num pontuar de linhas oblíquas e idiossincrasias poéticas. Reflexões de paisagens parecem conviver entre a sua forma mais complexa (romântica) e a sua versão destemidamente simplificada (minimal); representações humanas dissolvem-se entre a dúvida da auto-representação, o vulto fantasmagórico e a sugestão de um antropomorfismo reduto na auto-determinação da natureza. Análogos a estas pinturas (às quais retornaremos), comprende-se ainda no conjunto uma sequência de objetos escultóricos caracterizados pela sua profunda qualidade enigmática, utilizando como superfície para as suas intervenções um motif recorrente na obra do artista—mesas-malas de madeira. Frequentemente associados a caixeiros-viajantes, estes dispositivos dispõem de quatro pernas (normalmente irregulares devido à sua fragilidade) que se dobram e recolhem, carregando-se então por uma pega. Simbolicamente aludindo a algo efémero e transitório, as mesas desvelam a mutabilidade dos raciocínios sobre si desenvolvidos à imagem de um pensamento ou retórica fugaz, reconstruída sobre a premeditação do instante e aberta a interpretações ou entendimentos igualmente díspares. Le parti pris des choses [1] anuncia por excelência isso—a determinação dos objetos ou, à semelhança do jogo de palavras presente no próprio título da exposição, o partido que os objetos tomam. De facto, é notória a influência que a poesia das coisas característica de Ponge detém sobre o entendimento plástico de Calçada Bastos que, à sua semelhança, procura desdobrar-se perante a procura de le mot juste.

Confrontando algumas das mais prementes preocupações do artista, as variações pictóricas expandem-se segundo ritmos e contratempos particulares pelo seu silêncio e presença meditativa. Debruçando-se sobre uma tendência visual simultaneamente aliada à estética do século XIX (aliás, recorrentemente referenciada) e às vanguardas norte-americanas da segunda metade do século passado, as pinturas do artista demonstram uma predisposição para temas próximos da misantropia enquanto lugar de dissociação, vazio e

contemplação. Desde árvores que se fortificam após arderem (como é o caso de Pirófito) a paisagens que se recolhem na sua própria impossibilidade (Por esta estrada não se chega ao mar), sucedem-se nos trabalhos dicotomias constantes e distintas que, apesar do fenómeno da contradição, se imiscuem. Dualidades como rejubilo e melancolia (como no exemplo anteriormente mencionado) são vagarosamente embaladas por sentimentos de aproximação e escape (em Ocaso e A Reason III, respectivamente), assim como a serenidade lumínica e distópica de Liberty Av., Vista Pacífica ou da série Montes contrasta, convocando, com a violência inerte e sufocante de This blunt axe (uma lâmina romba e angustiosa) e I can’t breath (uma esfinge sem nariz), ambas imagens de um desmembramento poético associado a uma vontade sem força. A par da alienação que aparentam testemunhar existem, contudo, pares que reconvocam estas imagens para um estado de absoluta consciência e sedimentação—seres perplexos mas presentes que observam toda a cena com a atenção descomprometida de um sono infinito. Alguns deles (seres) referenciando o próprio artista em trabalhos mais antigos e de cariz performático (Both of us surge de Quadrifoglio [2000] e Video Still Painting de Same Old Tune [2005]), outros fabricando misantropos absorvidos pela exaltação fenomenológica circundante.

Plácida apesar do seu tumulto, a exposição acarreta um humor silencioso provido pela entrada aguçada dos desenhos e esculturas externos ao trabalho pictórico. Catalisados, precisamente, pela repetição, deslocamento e reincidência na pintura, as referências reproduzidas nos objetos escultóricos libertam-se de um suposto entendimento intelectual e transformam-se em razões para o desenvolver da própria escultura e da própria pintura em si; determinam-se enquanto balizas para a abertura de um lugar que sinalize o acontecer entre o artista e a imagem e, mais importante, relegam a esse mesmo espaço o lugar da surpresa. É possível testemunhar este movimento no conjunto das seis obras de Le parti pris des choses quando vestígios de objetos do foro quotidiano se entrelaçam com indícios de um universo arquivista, mnémico e muito pessoal (i.e. uma lâmina de um machado na perna da mesa com o desenho da vinha do enforcado; a fateixa que suporta a reprodução de um pessegueiro; a dinâmica muito tarkovskiana entre o corpo e a máquina no papel de escrever que se debruça sobre o tampo relegado ao corpo de uma mulher; ou a reprodução visual da própria pega da mesa, retirada e reposicionada junto ao seu contorno). Também junto a This Blunt Axe encontramos um tronco de uma árvore, bruto e robusto, furado com dezenas de pregos ferrugentos na sua superfície cortada, como que se deixando seduzir à provocação da lâmina romba que o confronta junto a uma árvore revestida de olhos. Como um eco prolongado, surge ainda um conjunto de vinte e dois trabalhos sobre papel, desenhos cujos gestos parecem migrar dos tampos esbranquiçados das mesas e repousar ora nas paredes que encerram a exposição. Neles, a posição de vários artistas no seu atelier. Ou, talvez, a determinação com que cada um caminha no mundo.

[1] Título da obra homónima de Francis Ponge, 1942.