Isabel Nogueira – Words don’t come wasy

Words don’t Come Easy

O título da exposição, que nos remete para a canção de F. R. David, de 1982, não faz justiça à mostra, que é muito melhor, embora, de facto, se trate de uma exposição sobre a palavra ou sobre a não palavra. O universo da viagem e da memória vem sendo uma matriz da obra de Rui Calçada Bastos [n. 1971]. Mas também a missiva que a tem atravessado. A título de exemplo, a utilização de envelopes nas composições visuais, evocando um diálogo com alguns dos mais relevantes artistas do século XX, constituiu uma série recente [2020] que Calçada Bastos desenvolveu, propondo uma “correspondência” com Brâncusi, Kazimir Malevich ou Donald Judd.  Também a bela peça Return to sender [2020] utiliza o vídeo em “loop” como evidência da impossibilidade comunicacional. Poderíamos referir mais exemplos de como determinado objecto, neste caso, o envelope, ocupa um propósito central de materialização e de problematização.  E, neste ponto, entramos especificamente na exposição em causa.

O ambiente é intimista. A luz é cálida numa iluminação bem conseguida. Naturalmente que uma carta se lê e se escreve, em princípio, só. Uma carta é um lugar de solidão, revelação e memória. Tal como a exposição se vai, ela própria, revelando através dos vários elementos que a compõem. A peça que mais se destaca — cinco envelopes projectados na parede através de jogo de espelhos e focos — vai buscar o seu título ao refrão da canção de Nick Cave & The Bad Seeds Love letter, que inicia precisamente com o inadiável carácter de urgência do amor e da palavra: «I hold this letter in my hand/A plea, a petition, a kind of prayer». É um trabalho elegante e evocativo, possivelmente o melhor trabalho do conjunto, precisamente, e também, pela sua não evidência. Não é um envelope; é a imagem/reflexo de um envelope que se desenvolve ao longo da parede onde se projecta, com uma subtil inclinação que acompanha a sua cadência, como se de uma variação solar ou lunar se tratasse, quer dizer, num jogo de luz e sombra, ou seja, de revelação e de ocultação. E um envelope existe precisamente nesta dicotomia — abrir/revelar e fechar/ocultar — as palavras que estão dentro.

Outras peças são mais literais na sua configuração, tais como o envelope colocado sobre uma precisa e antiga balaça de correios, possivelmente pesando as palavras ou o silêncio. O silêncio pesa uma imensidão, como se sabe. Pode constituir também uma forma de domínio, exactamente como a palavra. Também a peça Bullet point é um espelho com formato de envelope estilhaçado, ou ainda o envelope atravessado pela bússola [North]. Na parede oposta a Love letter, love letter, go tell her, go tell her surge um série fotográfica na qual o artista se auto-representa no acto de ocultação de uma carta numa fenda na parede [The are no walls between us]. As referências da literatura e da música vão surgindo e pontuado igualmente o discurso expositivo. 

Mas, na verdade, utilizar um envelope/carta é hoje praticamente um acto tão anacrónico como — talvez também por isso — romantizado. E este aspecto entronca num outro filão do trabalho de Rui Calçada Bastos, concretamente, no seu gosto pelo objecto, muitas vezes, já em desuso, fora do tempo e de circulação. O artista surge como um guardador de memórias no seu apreço específico, eventualmente fetichista, pelo objecto. Nesta exposição, além do próprio envelope e do seu significado, há a balança antiga ou as malas de madeira que já não conhecem fabrico, propondo um olhar sobre numa espécie de aura que se sustenta na distância intangível, agora tornada próxima e pontualmente iluminada para o espectador a desfrutar. 

As cartas, especificamente as de amor, são clássicos da literatura e das canções, como sabemos. De Nick Cave a Metronomy, de Bryan Ferry a Natalie Cole, ou mesmo Love letters from a motherfucker, de WrayGunn, as canções fazem ecoar palavras depois apropriadas por outros, tornadas fluxos de vida e de emoções. Nem sempre as palavras surgem facilmente. Por vezes nunca chegam a surgir. Mas uma carta comporta sempre um potencial de intimidade e de lugar emocional. Tantas vezes inadiável e urgente.

Isabel Nogueira in Contemporanea