Maria Beatriz Marquilhas – Paisagem para desaparecidos
Paisagem para Desaparecidos
No início, há sempre um viajante que parte. De Marco Polo a Ulisses ou Eneias, a história humana — quer a vivida, quer a imaginada — é uma história de partidas. Esta acontece em 1991, ano em que Rui Calçada Bastos completa os seus vinte anos e decide atravessar os Himalaias indianos. Ritual iniciático ou de passagem, esta exposição regressa a esses lugares e momentos, com um olhar distanciado, capaz de enquadrar um rosto ausente. Dividida em três momentos distintos, produzidos em 2018 mas que começam há 27 anos, esta Paisagem para Desaparecidos é protagonizada por figuras ausentes, aqui evocadas nos seus retratos.
O chão da galeria é ocupado por uma instalação em espelho: os caixilhos de dezenas de molduras, ordenados do maior para o mais pequeno, estão colocados frente-a-frente com os respectivos centros das molduras, que se encontram vazios. Os retratos acentuam o desaparecimento dos retratados, como se esse vazio devesse ser recordado ou enaltecido. Desconhecemos se essas personagens nunca existiram ou se terão sido eliminadas no processo de erosão que é o esquecimento. A moldura como demarcação e o retrato que nela não encontramos funcionam como uma nomeação que confirma a ausência, como se a linha temporal invertida que percorremos ao revisitar esse momento pretérito se encontrasse interrompida, inacessível. Esta multidão de desaparecidos, ordenada num rigoroso alinhamento, forma uma mancha peculiar que preenche o espaço, dando ao espectador uma paisagem perfeitamente enquadrada. E dessa forma, ao acto de retratar vão respondendo sucessivos lugares vazios que dão forma a uma paisagem árida e repetitiva, como um deserto.
A memória leva a recriar uma paisagem a partir dos estilhaços que permanecem depois da experiência, na certeza de que essa será sempre uma “paisagem para desaparecidos.” Numa estranha geometria de simetrias que relaciona formas elementares com fenómenos naturais — linha e horizonte, triângulo e montanha — Rui Calçada Bastos cria um dispositivo que mostra o lado formal da memória. O resto é de uma intimidade que por vezes está condenada à invisibilidade.
Nas duas paredes laterais, os segundo e terceiro momentos dão-nos a linha do horizonte para esta paisagem. Complementos de molduras em papel, como passepartouts de diversas cores e tamanhos, alinham-se numa sequência de rectângulos desabitados, como se se tratasse de meros despojos de um exaustivo exercício de evocação. Na parede oposta, uma série de doze fotogravuras a preto e branco leva-nos até um lugar onde a densidade negra da montanha contrasta com a luminosidade de um céu que fere. Um lugar que sabemos solitário, alheio ao caminhar do viajante. Em continuidade com o despovoamento que encontrámos nas molduras vazias que preenchem a sala, as imagens deste cenário expressionista são retratos da ausência. “Nem a vingança, nem o perdão, nem as prisões, nem sequer o esquecimento podem modificar o invulnerável passado.” A frase é de Jorge Luis Borges na sua Nova Refutação do Tempo (1946) e as fotogravuras de Calçada Bastos revelam essa implacabilidade das imagens quando são roubadas ao tempo, como se se tivessem tornado imunes à nossa contemplação.
O deserto é um lugar-modelo das vastidões desmedidas mas despovoadas. Paisagem de condições inóspitas para a vida humana, os desertos atravessam-se, são exercícios de superação. Na origem etimológica da palavra está uma ideia de oposição à ordem ou ao alinhamento (de-serere), próxima do acto de desertar ou abandonar. Esse aparente caos dos lugares desertos sempre esteve ligada a um misticismo solitário. Era no deserto que, no século III, os padres perseguidos se refugiavam e onde viviam em ascetismo. Em 2009, Calçada Bastos apresenta uma exposição com o título In the desert you can’t remember your name. Seja num deserto arenoso, ou entre as sinuosidades de uma cordilheira como os Himalaias, falamos sempre de experiências em que o mundo interior sofre uma espécie de esvaziamento do eu. Neste deserto de Rui Calçada Bastos, a simplicidade das obras, aliada a formas de geometria depurada e ao recurso à repetição, aproximam-nos de um misticismo primitivo.
Se encontramos a figura do viajante em quase todos os mitos fundadores, retratar e recordar são acções indissociáveis dessas ausências. A teia que Penélope tecia e desfazia para enganar a demora de Ulisses anuncia já o seu regresso. É no desfazer da teia que a memória se transforma em poesia, num gesto vão mas ao mesmo tempo urgente, como o de retratar alguém que já não existe. A força poética está em continuar a criar uma paisagem de retratos, para evocar uma memória ou para emoldurar o próprio esquecimento. É que só no retrato vazio cabe o deserto inteiro, esquivo ao exercício de subtracção implicado no acto de retratar.
Maria Beatriz Marquilhas é Licenciada e mestre em Ciências da Comunicação pela Faculdade de Ciências Sociais e Humanas da Universidade Nova de Lisboa, tendo-se especializado em Comunicação e Artes com uma dissertação sobre o conceito na experiência artística. Contribui regularmente com artigos e ensaios para revistas. Vive e trabalha em Lisboa.
Maria Beatriz Marquilhas 2018