Celina Brás – Realismo e intensidade poética

Celina Brás-A vida constrói-se através do olhar e o olhar é esculpido pelo tempo. As fotografias são fragmentos de tempo que confirmam a realidade mas dão, também, espaço à encenação e ficção desse mesmo real. Calçada Bastos revela-nos uma curiosidade infinita e um encantamento por movimentos invisíveis, imperceptíveis ao olhar mais descuidado mas que no seu trabalho se manifestam de forma poética e continuada.

Como é a tua prática fotográfica?

Rui Calçada Bastos-Diária.

CB-Nos teus trabalhos mais recentes parece existir a vontade de desacelerar o tempo obrigando-nos a um olhar mais profundo. Concordas?

RCB-Antes de falar desse conjunto de obras, acho importante referir que o processo de desaceleração do tempo, para um aprofundamento do olhar, faz parte da prática artística em geral. Neste caso, são, de facto, obras que surgiram durante um longo período de observação da paisagem urbana, que é, aliás, uma constante do meu trabalho, consequência de uma grande obsessão em decantar pequenos movimentos internos das cidades. Por movimentos internos refiro-me a pequenos acontecimentos, quase invisíveis, que muitas vezes estão próximos do desenho, na sua origem, e que apenas com um olhar demorado e com uma certa disponibilidade se consegue detectar. Qualquer pessoa tem acesso a eles basta apenas abstrairmo-nos um pouco, daquilo que nos é mais obvio à nossa volta, para deixar esses pequenos movimentos ganharem protagonismo. Comecei, pela primeira vez, a pensar em tudo isto durante algumas das minhas viagens de trabalho. Gosto de conhecer as cidades andando a pé. Caminhar torna-se algo muito próximo de um processo de meditação. Foi assim que percebi que esses movimentos são comuns no mundo inteiro, como se em todas as cidades existissem pequenos fantasmas que produzem esses movimentos quase imperceptiveis ao olhar humano. Decidi aproximar-me, ainda mais, e documentá-los da forma mais exaustiva possível. Foi assim que surgiu, inicialmente, “Events Life in a Bush of Ghosts”, em 2008, e, mais recentemente, “Passagem de Nivel”, em 2014. Um copo de plástico vazio, em movimentos circulares, num chão em Berlim partilha assim o mesmo palco que uma linha de água a escorrer por uma parede em Los Angeles. É o desenho resultante da sua definição mais ampla que me interessa. Essa é a paisagem urbana a que me refiro. Cada pequeno evento é uma infinitude de possibilidades.


CB-Da “Passagem de nível” “À luz sincera do dia”. Existe alguma complementaridade ou intenção sequencial entre as duas exposições? O propósito do itinerário construído em “Passagem de Nível” culmina com “À luz sincera do dia”?

RCB-“Passagem de nível” foi, a vários níveis, uma primeira aproximação à exposição “À luz sincera do dia”. Quase como um esboço.
Em “Passagem de Nível”, na galeria Invaliden em Berlim, ensaiei duas peças, antes de avançar para a apresentação em Elvas, e tentei perceber como poderiam resultar no espaço, são peças com uma vertente escultórica e de interdependência que era necessário testar e experienciar. Não são peças que se possam produzir num atelier e tomar aí as decisões porque entram em diálogo com a própria arquitectura do espaço. Pode dizer-se que se trata de um site specific. Tanto em Berlim como em Elvas a exposição toda partiu dessas duas peças centrais.
Refiro-me a Ghost (2014), uma parede onde se inscrevem os restos de uma escada. Como se ali tivesse existido uma escada, em tempos, naquele espaço, naquela parede, e depois tivesse sido removida permanecendo apenas as brechas que denunciam a sua existência anterior. Do outro lado, dessa parede, é projectado o vídeo Passagem de nível 2014, uma recolha exaustiva dos movimentos internos da cidade de Berlim. É a continuídade do vídeo Events – life in a Bush of Ghosts (2008) onde assumo uma maior preocupação cinematográfica. Deixa de ser um registo diário e casual passando a existir um processo de pesquisa e planeamento de filmagem dos fenómenos observados num certo dia, a certa hora. Uma obsessão constante que passa por dias inteiros de observação. Neste vídeo surge um novo elemento, a banda sonora inteiramente composta pelo músico português Tiago Miranda.
A primeira montagem, em Berlim, serviu para perceber quais os melhores materiais a utilizar e a pertinência de colocar o vídeo na parte de trás da parede. Cheguei à conclusão que são duas peças individuais que acrescentam história uma à outra. Esta informação e experiência, juntamente com o diálogo permanente com o curador João Silvério, foram cruciais na montagem da exposição no Museu de Arte Contemporânea de Elvas. A sala do museu, onde estas duas peças foram instaladas, é bastante maior que a sala da Invaliden e, assim, surge um novo elemento resolvido através do desenho de luz, o que no fundo vai ao encontro do próprio título da exposição. Trata-se, uma vez mais, de uma questão de desenho e penso ter conseguido uma situação de diferenciação dos espaços, através da luz, sem enveredar por uma situação encenada ou cenográfica.


CB-Qual o valor e importância desta exposição no contexto do teu percurso artístico. Pode ser considerado um momento inaugural?

RCB-O convite para esta exposição individual, lançado pelo coleccionador António Cachola, está integrado num ciclo de exposições que o museu tem vindo a realizar com artistas presentes na sua colecção, e é um momento bastante importante no meu percurso.
A capacidade de acreditar do coleccionador António Cachola tem sido o motor de uma das mais importantes colecções de arte contemporânea, em Portugal, da qual tenho o prazer de fazer parte.
Realizar a minha primeira exposição individual num museu permitiu-me trabalhar uma série de ideias, com o curador João Silvério, e encontrar um conjunto de relações entre as minhas obras, sendo que algumas delas tinham quatro a cinco anos de distanciamento. Isto só acontece quando apresentamos um número considerável de obras no mesmo espaço: percebemos o diálogo que estabelecem entre si. O papel do curador é muito importante porque tem um olhar mais distanciado e, por vezes, mais incisivo.
O acompanhamento do curador João Silvério, na primeira apresentação em Berlim, revelou-se de extrema importância porque conduziu a uma maior aproximação ao meu corpo de trabalho mais recente. Quando voltámos a reunir em Elvas havia já uma maior à vontade com o vocabulário de cada um, facilitando o diálogo e, acima de tudo, potenciando o lugar reservado a cada peça no próprio espaço.


CB-O título “À luz sincera do dia” é inspirador e remete para um lugar romântico, poético mas, também, genuíno, real, onde a verdade é convocada. Esta dualidade simbólica pode ser considerada parte da tua génese enquanto artista?

RCB-Sim, essa dualidade é uma constante na maior parte do meu trabalho. Não sei bem de onde vem. Acho que o título “Passagem de Nivel”, da minha exposição em Berlim, aborda um pouco essa questão ou seja, parece-me que este estado de obsessão diária, a que me referi há pouco, proporciona-me a passagem para um outro nível de consciência, que no meu caso acaba por ser transferido para essa dualidade simbólica que atravessa quase todo o meu trabalho.
A exposição reúne vídeo, fotografia e instalação. Encontramos diversas paisagens urbanas de cidades como Berlim, Xangai, Estocolmo, Los Angeles e Lisboa. O teu olhar sobre a cidade é, por vezes, um olhar exterior que provém do interior? Ou seja, parte de um questionamento constante?
Não sei se se trata de um questionamento. Acho que é mais um deslumbramento, por vezes até de uma forma um pouco infantil. Uma curiosidade pelas mais pequenas coisas à minha volta. Pode ser o caminho que faz a água entre as pedras da calçada depois de ter sido entornada numa mesa de café. É dessa obsessão que sou feito. Muitas vezes não se torna consequente mas lembra-me, constantemente, uma série de questões que tem que ver com o desenho, com a escultura e com a imagem em movimento. O lugar das coisas é aquele que queremos e projectamos.
Estas cidades estão despidas de pessoas, encontram-se, por vezes, em construção, sob a acção do clima (vento, chuva, neve) ou a brincar com a luz. Há um abandono nostálgico. É como se a cidade se confrontasse com ela própria. Queres comentar?
Estas cidades são, na sua maioria, despidas de pessoas apenas para dar total protagonismo aquilo que me interessa que, neste caso, são os pequenos movimentos ou eventos de que falo anteriormente. Interessa-me ter a atenção focada no sujeito principal que é aquilo que está acontecer à minha frente. Quanto menos ruído melhor.

CB-O auto-retrato que apresentas na exposição (Even all the hairs of your head are all numbered, 2014) é muito forte e transporta-nos para o carácter auto-referencial da tua obra. Vida e obra são inseparáveis?

RCB-A minha imagem apareceu, pela primeira vez, em Quadrifoglio, em 1999, e surgiu apenas por uma razão prática. Precisava de uma figura masculina no vídeo e utilizei-me a mim próprio. Apenas mais tarde e com o desenvolver da minha biografia pessoal achei que fazia sentido incorporá-la mais vezes. Tento não confundir o lado auto-biográfico com o lado auto-referencial. Acho que todos os artistas, no seu trabalho, estão a falar de si próprios, dos livros que lêem, dos filmes que vêem, dos artistas que gostam, por isso podemos dizer que estão a falar da sua vida. Penso que o mais interessante é conseguir que isso deixe de ser importante ao fruirmos a obra. É válido como motor criativo da obra mas não sei se é muito importante na sua leitura.

CB-A arte é universal. Os artistas não pertencem a um só lugar. No teu caso, em concreto, as viagens fazem parte da tua vivência, o que lhe confere muitas influências e contaminações. Parece evidente que contigo não podia ser de outra maneira. Queres comentar?

RCB-Sim, parece-me que não podia mesmo ser de outra maneira. De uma forma muito breve, posso dizer-te que saí de Portugal, aos quinze anos anos, para Macau, onde residi cerca de dez anos. Voltei ao Porto para as Belas Artes, depois fui para Lisboa ainda nas Belas Artes e no Ar.CO. Passado algum tempo, ganhei a bolsa da Gulbenkian e fui para a Berlim onde resido há doze anos. Ou seja, passei praticamente metade da minha vida adulta fora de Portugal, com tudo o que de bom e de mau possa daí advir. Mais não sei.

http://contemporanea.pt/entrevistas/rui-calcada-bastos/