João Pinharanda – Its all about sharing

Quatro fotografias de “atelier”, duas fotografias de exterior, uns banais ténis sobre o chão, uma escultura e um vídeo compõem as peças em exposição na Galeria Pedro Oliveira. A escultura (dois casacos, na manga dos quais se enfia uma lâmpada com braço comum) dá o nome à exposição segundo um pretexto romântico e reflexivo (“Loneliness comes from one, escreve se no tubo da lâmpada). O vídeo reforça essa dimensão no título (“Left(L)overs”), na cenográfica montagem e na composição narrativa. O título joga com os sentidos do que se deixa para trás. De costas (evocando Friedrich ou Magritte), frente a um corredor de iluminação dramática o artista sacode o peito com pancadas que se tornam tiros. Longe de se livrar do pó, acaba por manchar de branco todo o casaco. A peça é uma metáfora de uma impossibilidade.

Rui Calçada Bastos tem dez anos de trabalho. A sua carreira iniciou se logo a seguir ao Atelier Livre da Escola António Arroio, orientado por Pedro Morais – expôs a propósito de um conjunto de experiências vividas de Macau ao Tibete. Desde então, o artista tem desenvolvido a sua linguagem fora de mecanismos de consagração mediática e tem vivido de novo fora de Portugal: em Paris (2002) e Berlim, onde foi bolseiro português na Kunstlerhaus Bethanien (2003) e onde este ano, obteve uma bolsa da Neuer Berliner Kunstverein.

Em 1999 Rui Calçada Bastos apresentou ainda uma obra resultante de filmagens realizadas na China: “Ten years looking forward to see you” (Galeria Lino António). A peça estabelece uma linguagem autoral onde o que dá a ver e o proprio olhar (ou ausência de olhar ) dos protagonistas é essencial. Mas outros temas permanentes se insinuam desde o início:o tema da deslocação ( no sentido da deslocação espacial e da transformação espiritual), ou o tema da memória. E ambos arrastam para outros temas: o da perda e do desejo, o da partilha e o do desencontro. Ao serem convocados e explicitados, tais temas colocam-nos perante fragmentos de uma (de muitas) histórias de amor.

Rui Calçada Bastos convoca uma sensibilidade alheia às correntes mais evidentes das linguagens contemporâneas. A sua poética nao se manifesta segundo os cânones de qualquer derrisão (“kitsch” ou não ), de qualquer militância “camp”, na exacerbação expressionista ou na exposição erótica ou sequer sensual do corpo. Digamos que Calçada Bastos encarna a figura não do ser compulsivamente apaixonado (como no mito de D. Juan), mas do apaixonado wertheriano, caído por um ser ideal que a realidade impede de atingir. Num tal herói não se distingue o tormento da alma do tormento do corpo: deslocando-se de cidade em cidade, de país em país, Calçada Bastos arrasta consigo pertences e memórias, reconverte objectos e imagems em discursos deceptivos e melancólicos – e na exploração de mais este conceito histórico da cultura europeia encontramos outra das causas do seu afastamento da superficie mais atractiva da produção actual. Duas peças recentes dão sentido imediato a estas observações: o vídeo “It`s not romantic to be romantic”(2003) e “Love Map” (em dois suportes: múltiplo serigrafado e vídeo em produção). Esta peça entende-se como enfrentamento emotivo e sem censura: consta de um falso mapa que funde quatro cidades onde teve quatro diferentes amores (Lisboa, Berlin, Paris e Budapeste). No vídeo o artista dobra sucessivas esquinas, de cada vez mudando de cidade, mas sugerindo executar um percurso contínuo.

Já a primeira obra citada surge, desde o título, como auto-avaliação crítica: em dois ecrâs contíguos, as personagens (homem e mulher), de novo de costas, são filmadas de cima, dando ao espectador um lugar de omnipresença: ele está num banco de jardim (as folhas mexem em imagem acelerada), ela está no mar mergulhada até à cintura no mar (as ondas em imagem lenta). Num outro vídeo mais antigo o ecrã, também em díptico, mostra um casal, de frente e em plano americano: as imagems aparecem e desaparecem em tempos desencontrados no vapor que cobre e descobre o espelho onde se reflectem. A vida é um campo de impossibilidades, onde a partilha é uma partilha de desencontros.

O video “Quadrifoglio”, de 2002, nomeadamente na cena em que as cartas se trocavam entre o casal protagonista de um dos episódios, já explicitava esta leitura. Curiosamente, “The Mirror Suitcase Man”, a apresentar brevemente em Berlim, termina com uma cena idêntica, embora encenada como troca de malas em filme de espionagem…Nas restantes cenas um homem passeia por Berlim, mostando lugares significativos da biografia do artista na superficie de uma mala forrada de espelhos.

A peça a apresentar em Coimbra, “Casting Thoughts”, desvenda os mesmos sentidos e alcança os seus objectivos através de um outro jogo: o rosto de uma rapariga é captado num complexo jogo de reflexos nos vidros de um metropolitano – sem que nunca nos olhe directamente, sem que nunca o seu corpo material seja captado.

Regresemos às banais fotografias da galeria. “Studio Accident”, Kleine Problem, Keine Problem” e os dois “ateliers” (Paris e Berlim), cada um sob o título “All I Had”, remetem – nos para um universo de trabalho onde o artista ensaia micronarrativas críticas (a estante que cai, a mesa que só tem três pernas) ou onde enuncia todos os espaços e objectos desse universo como elementos participantes da sua biografia sentimental. Já em “Contents” apresentado na Sala Poste-ite, temos o som de um texto onde se nomeiam todos os objectos do “atelier” de Berlim saindo de um conjunto de caixas empilhadas. Finalmente, de novo na galeria, uma vista da janela é dada como noticias do mundo exterior, onde as narrativas se libertam e o autor românticamente deambula: olhando a neve imaculada de um malevichiano quadrado branco rodeado de pegadas, mostrando o estado dos ténis com que dançou seis ininterruptas horas no Maria´s Club.

João Pinharanda in Mil Folhas, Publico, 25 Setembro 2004, Lisboa.